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O sigilo profissional deve ser flexibilizado?

Havia um cônego, numa cidadezinha em Minas Gerais, que tinha o costume de ficar encostado no muro lateral da matriz, depois da missa do meio-dia, aos domingos, cumprimentando os fiéis. Tinha sempre uma bênção a dar, acompanhada por um "bom dia, dona Mariazinha, bom dia seu Pedro...". De vez em quando, a fisionomia do ancião se crispava em sinal de preocupação. Acontecia se um passante especial surgia. Os munícipes mais espertos sabiam, então, que havia, em relação àquele fiel, algum segredo de confissão. O padre se transformava, assim, numa espécie de termômetro da temperatura política local, independentemente das fofocas do vilarejo.



 

 

Às conversas do confessionário se misturam os segredos dos médicos, dos hospitais em geral, dos laboratórios de análise clínica e de outras profissões que precisam guardar discrição quanto aos humores do corpo e pecados da alma, alinhando-se tudo, tocante aos advogados, e aos criminalistas especialmente, na guarda de fatos que poderiam, se revelados, conduzir o confitente à prisão. O segredo profissional, assim, faz parte da confiabilidade que deve existir na pessoa que recebe a confissão. Isso diz, soberanamente, com médicos e advogados.



No Estatuto da Advocacia é assegurado o segredo, estendendo-se o privilégio ao Código de Processo Penal e ao próprio Código Penal, o primeiro dispondo sobre o impedimento a que o sigilário preste depoimento, o segundo punindo o indiscreto. A proibição a que o advogado deponha só se excetua em estado de necessidade, valendo dizer que há casos em que criminalistas se expõem a processo criminal para não violarem o segredo.

 

 

Desgraçadamente, hoje, em razão do autoritarismo estatal e da covardia de uns poucos, o segredo profissional tem ido às tintas, porque muitos laboratórios, sob ameaça, têm remetido documentação absolutamente sigilosa à polícia, ao Ministério Público e quejandos, fazendo-o a um simples aceno das autoridades.



Lembro-me, muitos anos passados, de um habeas corpus impetrado em favor de um diretor do Hospital das Clínicas que se recusara a fornecer ao Poder Judiciário os dados de uma paciente que havia sofrido abortamento. O habeas corpus foi parar no Supremo Tribunal Federal, que concedeu a ordem para trancar a ação penal. O acórdão está transcrito no meu livro Aborto e Infanticídio.



 

 

Creio firmemente que o segredo profissional não pode ser flexibilizado. Quem o detém deve morrer com ele, mesmo que seja forçado, por todos os meios, a revelá-lo. Essa história de flexibilização só pode acontecer no diapasão de quem se volta a aplaudir o despotismo revelado, hoje, pelo momento político universal, em que o homem perde, no passar dos dias, o respeito à liberdade, submetendo-se àqueles que guardam o poder. A crítica vale para qualquer segmento da administração pública, sem exceção da polícia, do Ministério Público e do Poder Judiciário, uns e outros, em certa medida, empenhando-se em investigar os segredos alheios, enquanto procuram a ferro e fogo manter os próprios, inclusive nas interceptações telefônicas, o que constitui, no fim das contas, um enorme paradoxo.



Acontecia isso no regime nazista. A propósito, os judeus eram desnudados nas intimidades quando levados à câmara de gás, enquanto os carrascos se protegiam do frio com as fardas e pesados capotes fornecidos pelo exército alemão. Em suma: ou todos nus para que possam conhecer as nódoas que trazem na alma, ou todos protegidos da bisbilhotice alheia.



 

 

Para mim, portanto, segredo é isso. Carrego-os para o túmulo, com recomendações à família se e quando, nos estertores, perder a lucidez e me puser a dizer bobagens. Fechem-me a boca primeiro do que os olhos. Se todos os médicos e advogados assim o fizessem, as duas profissões manteriam toda a nobreza do passado. Cuida-se, então, de simples ato de coragem. Infelizmente, o temor é assemelhado àquele do cidadão que, pressentindo haver um cão raivoso atrás da porta, arregaça as fraldas e foge, contrito, sem saber que o barulho não é aquele de um cão, mas de um rato, ou de um coelho. Portanto, a manutenção do segredo profissional é, mais do que demonstração de respeito à lei, uma questão de perspectiva.







 

Paulo Sérgio Leite Fernandes ​​

Advogado criminalista

O sigilo profissional deve ser flexibilizado?

Jornal do Advogado nº 291, Ano XXX, Fevereiro de 2005, p. 09. 

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