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Artigos

Compatibilidade ou não entre Dolo Eventual e Tentativa de Homicídio

 

Raphael Soares Gullino

Assessor da Presidência da 116.ª Subseção da OAB do Jabaquara/Saúde

Assistente Jurídico da Miranda Junior Advocacia e Gullino Advocacia

 

Para se fazer uma análise entre o Dolo Eventual e a Tentativa de Homicídio, a priori, é importante conceituarmos estes dois institutos.

Dolo é o elemento subjetivo inserido na prática do ato criminoso relacionado à vontade do agente de praticar o crime. O Dolo pode ser direto ou indireto. No crime praticado com dolo direto, o agente que pratica a conduta criminosa visa ao fim último elencado no tipo penal, p. ex., “A” quer matar “B” com dois tiros no peito. “A” quis matar “B” e, portanto, agiu com dolo. O dolo diz-se direto uma vez que a vontade do agente se relaciona diretamente com o resultado morte.

Diferente do dolo direto existe o dolo indireto ou também chamado eventual em que a vontade do agente não se relaciona diretamente com o resultado final elencado no tipo, mas sim, de forma indireta, na assunção do risco de produzi-lo. Portanto, grossomodo, o dolo eventual se perfaz quando o agente assume o risco de produzir o resultado. O agente não quer, de forma direta, que o resultado ocorra, mas, se eventualmente ocorrer, não se importa.

O crime pode, ainda, ser consumado ou tentado. Diz-se crime consumado aquele cuja prática do ato finda com o resultado abstratamente elencado no tipo, em outras palavras, quando ocorre o que está expresso no texto da lei. Assim, se “B” morre com o disparo da arma de “A”, o crime de homicídio (art. 121, Código Penal) se consumou. Se, porventura “A” atira em “B”, sem, porém, atingi-lo, o crime ficou no âmbito da tentativa. Diz-se, portanto, crime tentado quando, iniciada sua execução, este não se consuma por motivos alheios à vontade do agente que o pratica.

Portanto, seguindo um raciocínio lógico, se o agente inicia a prática de um delito, logo existe o elemento subjetivo dolo; porém, se esta prática não se consuma por motivos alheios à vontade do agente, o crime, fica no âmbito da tentativa. Assim, vê-se claramente uma compatibilidade entre o dolo e o crime tentado. Existe intenção (dolo) na tentativa.

Entretanto, pode existir o elemento subjetivo dolo indireto (ou dolo eventual) nos crimes de tentativa de homicídio, isto é: existe compatibilidade entre o dolo eventual o homicídio tentado? 

O crime tentado, qualquer que seja, tem em si o elemento “vontade”, como já avençado, uma vez que o agente quer o resultado, porém, não o obtém por motivos alheios à sua vontade. Entretanto, no que tange ao dolo indireto, o agente assume o risco de produzir o resultado não desejando, necessariamente, o resultado disposto no texto legal.

Doutrina e Jurisprudência divergem quanto à compatibilidade entre estes dois elementos. Assim temos, por exemplo, Flávio Augusto Monteiro de Barros que defende, in verbis:

“Admite-se também a tentativa constituída de dolo eventual, quando o agente realiza a conduta assumindo o risco da consumação do crime, que não ocorre por circunstâncias alheias à sua vontade.”

Tendo nosso Ordenamento Jurídico equiparado o Dolo Direto ao Indireto (Eventual), não há razão para que não haja compatibilidade entre o Dolo, seja direto ou indireto, com o crime tentado. 

Assim, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo se manifesta:

"HOMICÍDIO DOLOSO  DOLO EVENTUAL  Dolo eventual é plenamente equiparado ao dolo direto. É inegável que arriscarse conscientemente a produzir um evento equivale tanto quanto querêlo; ainda que sem interesse nele, o agente o ratifica "ex ante”, presta anuência ao seu advento." (RT 720/412)

Nesse diapasão inclina-se ao mesmo entendimento Eugênio Raul Zaffaroni e, também, Nelson Hungria que, tomando por base o entendimento jurisprudencial acima exposto, aduz em sua obra:

"Do mesmo modo que é conciliável com o dolo de ímpeto, a tentativa de homicídio também o é com o dolo eventual. Este ponto de vista é inquestionável em face do novo Código, que equiparou o dolo eventual ao dolo direto. Se o agente aquiesce no advento do resultado 'morte', previsto como possível, é claro que este entra na órbita de sua volição (...): logo, se, por circunstâncias fortuitas, tal resultado não ocorre, é inegável que o agente deve responder por homicídio tentado. É verdade que, na prática, é dificílimo identificar a tentativa no caso de dolo eventual, notadamente quando resulta incruenta ou totalmente improfícua. Mas, repita-se: a dificuldade de prova não pode influir na conceituação da tentativa" (grifo nosso)

Portanto a linha de raciocínio dos dignos doutrinadores que entendem existir compatibilidade entre dolo eventual e crime tentado, no qual se insere a tentativa de homicídio, defende tal compatibilidade como uma conseqüência da equiparação do dolo direto e indireto no ordenamento jurídico.

Seguindo a mesma linha, o Ministério Público do Estado de São Paulo, em sua Tese nº 304, admite a compatibilidade entre os dois institutos.

Assim, por exemplo, há precedente no Egrégio Superior Tribunal de Justiça a esse respeito, ao qual, data maxima venia, peço permissão para transcrever:

PENAL. PROCESSUAL. INÉPCIA DA DENÚNCIA. AUSÊNCIA DE SUPORTE PROBATÓRIO PARA A AÇÃO PENAL. CRIME COMETIDO COM DOLO EVENTUAL.  POSSIBILIDADE DA FORMA TENTADA. “HABEAS CORPUS”. RECURSO. 1 NÃO HÁ QUE SE DIZER INEPTA A  DENÚNCIA QUE PREENCHE TODOS OS REQUISITOS IMPOSTOS  PELO CPP, ART. 41. 2.  A AUSÊNCIA DE SUPORTE PROBATÓRIO PARA A ALÇAO PENAL NÃO PODE SER VERIFICADA NA ESTREITA  VIA DO ‘HABEAS CORPUS’; SÓ APÓS O REGULAR CURSO DA  INSTRUÇÃO CRIMINAL PODE PODERÁ SE CHEGAR A CONCLUSÃO SOBRE SUA EFETIVA PARTICIPAÇÃO. 3.  ADMISSÍVEL A FORMA TENTADA DO CRIME COMETIDO COM DOLO EVENTUAL, JÁ QUE PLENAMENTE EQUIPARADO AO DOLO DIRETO; INEGAVEL QUE ARRISCAR-SE CONSCIENTEMTE A PRODUZIR UM EVENTO EQUIVALE TANTO QUANTO QUERE-LO. 4. RECURSO CONHECIDO MAS NÃO PROVIDO. (RHC 6.797/RJ)

 

Portanto, do que fora extraído da ementa acima, vê-se claramente que o entendimento da Colenda Corte do STJ, inclina-se ao entendimento de que a assunção de um risco equivale à vontade de produzi-lo, existindo, assim, uma equiparação material entre o dolo direto (querer), e o dolo indireto/eventual (assumir o risco).

 

Apesar da equiparação entre os elementos subjetivos do tipo (dolo direto e indireto), ambos são institutos completamente distintos, sendo equiparados pelo ordenamento jurídico apenas no âmbito formal. Na situação em que o agente inicia a prática de um determinado fato criminoso e este não se consuma por motivos alheios à sua vontade, vê-se claramente o dolo direto, isto é, a intenção voltada para o fim último do crime. Diferente é o dolo indireto em que o agente inicia a prática, tendo como fim último, a prática em si e não o resultado elencado no tipo penal. Assim, vejamos:

“A” atira projéteis de seu revólver a esmo, atingindo “B” sem matá-lo. Pode “A” ser enquadrado na hipótese de tentativa de homicídio? “A” não tinha a intenção sequer de ferir “B”, portanto é incompatível o fato com a hipótese da tentativa onde o dolo direto está inserido. Pode-se dizer que “A” assumiu um risco de produzir um resultado até mesmo mais gravoso, mas isso não significa que, em qualquer momento, tentou matar diretamente a pessoa de “B”.

Da mesma forma:

“A” dirige em altíssima velocidade, em uma rodovia cuja velocidade máxima permitida é de 30km/h, assumindo, assim, um risco de produzir o resultado morte em alguém. Não se pode dizer, neste exemplo, que “A” iniciou a prática de um ato, objetivando o resultado morte, como ocorre nos casos de dolo direto, cuja tentativa é admissível. 

Veja-se que mesmo equiparando o dolo direto com o dolo eventual, ambos são elementos diversos que devem ser estudados e analisados separadamente. Conforme já avençado, a equiparação do dolo direto e do dolo eventual é meramente formal, não atingindo os limites fáticos em si. O agente que inicia a prática de um crime, objetivando seu fim último, no caso do homicídio, a morte, não pode receber o mesmo tratamento que outro agente que não objetiva o fim abstratamente elencado no tipo penal, no caso, a morte, mas sim, tal resultado existe na situação fática como sendo subsidiário, isto é, um elemento secundário da conduta.

Neste sentido, o exímio jurista Júlio Fabbrini Mirabete assim explicita:

“Há hipóteses evidentes de impossibilidade da tentativa com dolo eventual nos crimes de homicídio e de lesões, pois quem põe em perigo a integridade corporal de alguém voluntariamente, sem desejar causar a lesão, pratica fato típico especial (art. 132); quem põe em risco a vida de alguém, causando-lhe lesão e não querendo sua morte, pratica o crime de lesão corporal de natureza grave (art. 129, §1º, II). Deve-se entender que, diante do texto legal, se punirá pelo crime menos grave quando o agente assume o risco de um resultado de lesão ou morte, respectivamente, que ao final não vem a ocorrer.” (grifo nosso)

Assim, dessa forma, o ilustre jurista entende, fundamentando-se no Princípio da Especialidade, e a colocação da vida humana em risco é fato tipificado em crime especial cuja pena é inferior ao crime de homicídio (geral), devendo, portanto, o agente responder pelo fato típico especial sendo que, dessa forma, a figura do dolo eventual no homicídio não consumado (portanto, “tentado”) desaparece, sendo, portanto, incompatível.

Dessa forma, imaginemos: “A” dirige seu carro em altíssima velocidade, assumindo um risco de produzir um resultado morte (art. 121, CP). “A”, no entanto, atinge o retrovisor lateral direito de seu carro em “B” que se preparava para atravessar a rua causando-lhe uma lesão. Justo é que “A” responda por lesão corporal (art. 129, CP), e não por tentativa de homicídio, uma vez que este não era o resultado pretendido e, muito menos, o resultado atingido. Justo é que “A” responda estritamente pelo que cometeu e não pelo que “poderia ter cometido”, vez que sua vontade não estava, como já avençado, voltada ao resultado morte.

Ainda no mesmo sentido, porém, com outro fundamento, o ilustre jurista Rogério Greco, em sua obra, aduz ipsis litteris:

“A própria definição legal do conceito de tentativa nos impede de reconhecê-la nos casos em que o agente atua com dolo eventual. Quando o Código Penal, em seu art. 14, II, diz ser o crime tentado quando, iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente, nos está a induzir, mediante a palavra vontade, que a tentativa somente será admissível quando a conduta do agente for finalística e diretamente dirigida à produção de um resultado, e não nas hipóteses em que somente assuma o risco de produzi-lo, nos termos propostos pela teoria do assentimento.” (grifo nosso)

 

Assim, em que pese o próprio conceito de crime tentado, já abordado na parte introdutória deste trabalho, a assunção de um risco em nada tem a ver com a vontade querida pelo agente de praticar o ato objetivando o fim elencado no tipo, no caso em questão, a morte. Dessa forma, não pode haver compatibilidade entre dolo eventual e tentativa de homicídio.

Por fim, em que pese parcela da doutrina inclinar-se ao entendimento de que existe compatibilidade entre dolo eventual e tentativa de homicídio, fundamentando-se na equiparação feita pelo sistema jurídico entre dolo direto e indireto (eventual), ambos são institutos que, apesar se subjetivos, completamente distintos e, como já avençado, são equiparados apenas no aspecto formal.

 

Materialmente o dolo direto, isto é, a vontade do agente de atingir o fim último elencado no tipo penal do art. 121 (homicídio), a morte, admite a tentativa, uma vez que iniciada a prática, esta pode não se consumar, permanecendo na ceara da “tentativa”. Diferente é o dolo eventual em que o agente não dirigiu sua prática ao fim último do tipo (morte), mas tão somente à conduta em si. Se ele vir a “quase” atingir o fim, não poderá ser enquadrado na hipótese da tentativa, uma vez que, no entendimento do citado de MIRABETE, qualquer outra situação poderá ser enquadrada em outro tipo penal.

 

Portanto, não há o que se falar em compatibilidade material (ou mesmo formal) entre dolo eventual e tentativa de homicídio.

 

 

BIBLIOGRAFIA

 

BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Direito Penal – Parte Geral. Vol. 1. São Paulo: Saraiva.

 

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Geral. 12ª Ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2010.

 

MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de Direito Penal – Parte Geral. 11ª Ed. São Paulo: Atlas, 1996.

 

PRADO, Leandro Cadenas. Resumo de Direito Penal – Parte Geral. 4ª Ed. São Paulo: Impetus, 2010

 

Tese 304 do MP/SP – Dr. Luiz Antonio Cardoso, Procurador de Justiça; Dra. Liliana Mercadante Mortari, Promotora de Justiça designada

 

 

SITES

 

www.stj.gov.br, acesso em 24 de setembro de 2012

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