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Tipos e Protótipos na construção do discurso.

Não assisti ao retorno do Superman às telas, mas, a exemplo de quase todos meus contemporâneos, recordo-me com perfeição das empolgantes demonstrações dos superpoderes do herói, e da gratidão que eu, criança, tinha para com Clark Kent, que sempre salvava a todos nós - o mundo, afinal - de manter-se sob jugo de um monstro maligno como Lex Luthor. Mais do que ser confortante pensar que existisse alguém cuja única fraqueza fora a criptonita, era exemplo de ética: não usava seus superpoderes senão para combater o Mal. Sequer sua amada podia conhecê-los.

 

 

Se, passada a infância, os mitos gradualmente perdem sua força, os protótipos seguem-nos a todo o tempo. Não só nas novelas da televisão, em que a antagonista é incapaz de ter uma virtude, mas nos nossos próprio cotidiano forense os protótipos estão presentes: nos processos, os bancos são tratados como aqueles velhos avaros de contos de fada, sem função social e presos às suas moedas de ouro; os empregadores como senhores de escravos; os réus em processo-crime como monstros facínoras.

É parte de o que filósofa Hannah Arendt mostra no livro Eichmann em Jerusalém. Adolf Eichmann, líder nazista, foi capturado na cidade de Buenos Aires, pelo serviço secreto israelense, em uma noite de abril de 1961, e levado a julgamento em Israel, porque "cometera crimes contra o povo judeu, crimes contra a humanidade e crimes de guerra, durante todo o período do regime nazista". Mas Arendt relata a surpresa quando, em lugar da figura de um monstro (porque fora capaz de crimes indescritíveis), no banco dos réus encontrava-se uma figura normal e pacata. Assim a autora descreve suas impressões, ao ver, em Israel, o julgamento do carrasco nazista:

 

 

"Ao longo de todo o julgamento, Eichmann tentou esclarecer quase sempre sem nenhum sucesso, aquele segundo ponto: 'inocente no sentido da acusação'. A acusação deixava implícito que ele não só agira conscientemente, coisa que ele não negava, como também agira por motivos baixos e plenamente consciente da natureza criminosa de seus feitos. Quanto aos motivos baixos, ele tinha certeza absoluta de que, no fundo de seu coração, não era aquilo que chamava de innerer Schweinehund, um bastardo imundo; e quanto a sua consciência, ele se lembrava perfeitamente de que só ficava com a consciência pesada quando não fazia aquilo que lhe ordenavam - embarcar milhões de homens, mulheres e crianças para a morte, com grande aplicação e o mais meticuloso cuidado (...) Meia dúzia de psiquiatras haviam atestado sua 'normalidade'." (Eichmann em Jerusalém, Cia. Das Letras, 2006)

O carrasco nazista era um comum burocrata, com bom comportamento familiar e "idéias muito positivas". Essa figura contrariava o tipo esperado, e assim causava surpresa..

 

 

Em um processo judicial, quando se desenvolve a argumentação, parte do trabalho do argumenta é destruir os protótipos e lugares-comuns. Estes são aquelas imagens que as pessoas formam não por preconceito - no sentido de descriminação -, mas por necessidade de ter referências para o próprio pensamento: um empresário deve ser avaro, a mãe das crianças deve ser sempre boa e acolhedora. E maternal.

Por isso deve o argumentante lembrar-se que, quando se depara com lugares-comuns que lhe são contrários, seu discurso não pode começar sem antes desconstituir idéias pré-concebidas, tal qual não se pode iniciar a edificação de uma casa sem antes demolir-se construção anterior que ocupe o mesmo terreno. Ausente o combate à idéia pré-concebida, os novos argumentos não têm lugar na mente do interlocutor. Para desconstituir protótipos anteriores, algumas observações podem ser diluídas no discurso, com cautela, para atentar ao interlocutor que ele deve livrar-se de protótipos que não são adequados à compreensão da tese defendida. Por exemplo:

 

 

a) A realidade é muito complexa para resumir-se a modelos. De fato, eles raramente são capazes de explicar a realidade.


b) Os tipos não devem ser protótipos. Características mais marcantes podem definir uma figura: os empresários são em regra ousados, os médicos interessam-se pela saúde, as mães são naturalmente atentas aos filhos. São os tipos, que entretanto contêm muitos matizes, os quais impedem a fixação dos protótipos: perfeita figura sem exceções ou gradações.

 

 


c) A pré-concepção de idéias oculta a preguiça de refletir e julgar. E é claro que a preguiça conduz a injustiças.


d) Os protótipos são parciais. Qualquer espécie de idealização de uma complexa realidade favorece a apenas uma das partes que eventualmente estejam em debate.

 

 


Quem constrói uma argumentação não se pode iludir: um ouvinte sempre julga por associação a frames, a quadros de valores que já tem concebidos. E, quando esses valores anteriores são prejudiciais à tese, devem ser objeto de atenção do argumentante

Talvez valha de consolo lembrar que o mundo não precisaria de argumentação se fosse formado só de situações-tipo, de confrontos tão fáceis de julgar quanto uma batalha entre o justo Superman e o satânico Lex Luthor. Aliás, seria é muito enfadonho.

 

 

Víctor Gabriel Rodríguez
Mestre e doutorando em Direito penal pela USP, autor de Argumentação Jurídica: Técnicas de Persuasão e Lógica Informal, com 4ª Edição pela Editora Martins Fontes, professor no Unibero.

Fonte: Jornal Carta Forense, Agosto/2006, p. 22

Tipos e Protótipos na construção do discurso.

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