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A Ciência que compõe o discurso e o Discurso que compõe a Ciência: linguagem técnica e jargão na oratória forense.

Alguns alunos, estudantes de Direito, afirmam categoricamente não gostarem de literatura. Corrijo: muitos alunos dizem isso. O que causa espanto, na medida em que é de se presumir que quem, na maturidade, definiu-se pela carreira jurídica, ao menos na adolescência, em seus tempos de colégio, deveria afinar-se com a disciplina que cuidava das letras, a literatura colegial. Mas nem sempre as presunções confirmam-se. A causa do paradoxo entre desgosto pelas letras na fase pré-universitária e a escolha de uma formação jurídica poucos anos depois não é, entretanto, tema desta coluna, embora sirva de introdução.

Porque o tema desta coluna retoma um fragmento da literatura nacional, a forma incisiva que o falecido Brás Cubas, personagem de Machado de Assis, comenta o discurso jurídico. Conta o defunto que, quando vivo, estudou Direito em Coimbra. E de seus tempos de Universidade, faz lembrança, com aquele estilo de quem fala "sem temer mais nada", por meio de uma fala que requer nossa atenção. Diz ele :

Não digo que a Universidade me não tivesse ensinado alguma; mas eu decorei-lhe só as fórmulas, o vocabulário, o esqueleto. Tratei-a como tratei o latim; embolsei três versos de Virgílio, dous de Horácio, uma dúzia de locuções morais e políticas, para as despesas da conversação. Tratei-os como tratei a história e a jurisprudência. Colhi de todas as cousas a fraseologia, a casca, a ornamentação...

A sagacidade do autor observava, já em 1881, que da Universidade o então aluno apenas fizera "decorar o vocabulário" e assim avançara na carreira, o que parece bastante realista. Da observação de Brás Cubas, aqui se retiram duas reflexões de extrema importância na construção do discurso jurídico.

A primeira delas é que o Direito, como Ciência, é composto de palavras. Não é de hoje que se nota que o bom profissional é aquele que conhece a linguagem de seu meio: o médico competente, o advogado capaz, o cientista atualizado são aqueles que bem dominam os termos específicos de sua ciência, porque, de um modo ou de outro, é na composição do seu discurso que acabam demonstrando capacidade profissional: a fala em uma reunião para justificar suas escolhas, a defesa em uma audiência, um texto para expor o resultado de uma pesquisa etc.

Daí surge forte princípio: colher da ciência jurídica "as palavras", como parece ter feito Brás Cubas, não significa, ao contrário do quanto já se pensou em outros tempos, uma forma de verborragia, de "falar complicado" ou "sofisticadamente". Conhecer suas palavras significa adquirir a própria ciência, ou seja, o Direito. Na voz de Peirce, "é errôneo dizer simplesmente que uma boa linguagem é importante para pensar bem, porque ela é a essência do próprio pensamento". E então, em um contexto de evolução, em que a ciência jurídica torna-se cada vez mais complexa, é natural que a linguagem também se, por assim dizer, complique: surgem continuamente novos termos e expressões, para fazer frente às novas tecnologias jurídicas. Para batizá-las, pois só com um nome as novidades vêm compor o universo do pensamento jurídico.

Ciências como a Medicina ou a Química têm mais rígido mecanismo de neologismos, ou seja, de surgimento de novas palavras para dar conta das descobertas e dos avanços técnicos: as doenças ou os compostos químicos têm regras rígidas de nomenclatura. Em Direito, até pela amplitude de sua seara, os neologismos aparecem mais raramente, sendo mais usual que palavras já constantes do vernáculo venham a ser infladas de significado técnico, pela boa doutrina. Basta uma reflexão rápida para que se perceba que alguns nomes, hoje correntes no discurso do Direito, poucos anos atrás eram quase inexistentes, ou não assumiam qualquer sentido jurídico, embora estivessem na linguagem comum. Pense nesses exemplos: precaução, risco, direito difuso, imputação objetiva, efetividade, dentre outros.

Tudo isso para dizer que conhecer o Direito significa conhecer o vocabulário técnico jurídico. E, para bem argumentar e convencer, é necessário dominá-lo: fazer uso dele, articulá-lo com propriedade, para que o discurso progrida e faça sentido.

Nesse ponto reside distinção que a argumentação jurídica não pode deixar de fazer, e que contém a segunda reflexão que fazemos, a partir do pensamento de Brás Cubas. Caro aluno, nunca mais se esqueça: vocabulário técnico não é o mesmo que jargão jurídico. O jargão, ao contrário de tudo o quanto anteriormente exposto, está muito mais para a gíria que para a ciência. O jargão é o conjunto de palavras próprias de uma profissão, mas que não constitui técnica. Ele é pedante, em geral arcaico, empolado e sem conteúdo: dizer "data vênia" é jargão; dizer "ingressar" em vez de "entrar" é jargão; dizer "nosocômio" em lugar de "hospital" é jargão; dizer que o fugitivo saiu em "desabalada carreira", ou que "claudica"em vez de "mancar", ou que "urge destacar a importância disto ou daquilo" é muito comum na seara jurídica, mas é nada tem de técnico. Mero jargão.

Assim, dicas práticas para diferenciar a linguagem técnica do mero jargão jurídico, para valorizar aquela e evitar, no quanto possível, este:

a) A linguagem técnica tem alicerce doutrinário; o jargão é vazio de sentido.


b) A linguagem técnica, porque específica, raramente comporta sinonímia; o jargão tem sempre um substituto menos precioso, na linguagem corrente.

 

c) O jargão é quase sempre arcaico, antigo; a linguagem técnica - aliás como toda técnica - está sempre em evolução. Tem de ser atualizada.


d) O jargão, ainda que tente muito disfarçar, é pobreza de linguagem; a linguagem técnica é a própria riqueza de idéias, que persuadem.

 

e) Os grandes cientistas procuram abandonar o jargão, até porque ele compromete a precisão técnica. E jamais dispensam os termos científicos seguros, tanto isso é verdade que grande parte dos trabalhos de ciência começam por apresentar seguras definições dos vocábulos e expressões utilizados.


Para compor um discurso jurídico, portanto, é necessário o domínio da técnica, que se expressa pela linguagem. Mas (sempre existe um mas) é necessário, principalmente para o estudante, evitar o canto da sereia da linguagem empolada. Ela pode ocultar palavras aparentemente técnicas, mas que nada mais são que uma gíria empobrecedora, que retira do discurso a capacidade de convencimento do interlocutor. Não passam de casca, ornamentação.

Víctor Gabriel Rodríguez
Mestre e doutorando em Direito penal pela USP, autor de Argumentação Jurídica: Técnicas de Persuasão e Lógica Informal, com 4ª Edição pela Editora Martins Fontes, professor no Unibero.

Fonte: Jornal Carta Forense, Julho/2006, p. 20

A Ciência que compõe o discurso e o Discurso que compõe a Ciência: linguagem técnica e jargão na oratória forense.

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