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Negligência paterna, homicídio não intencional e perdão judicial.

Luiz Flávio Gomes

 

 

Os crimes podem ser dolosos (intencionais) ou culposos (não intencionais). Nos últimos meses, vêm sendo noticiados vários fatos (todos com certa semelhança) relacionados com a conduta do pai que esquece o filho dentro do carro, gerando sua morte.

Trata-se, em regra, de crime não intencional (culposo), que admite o chamado perdão judicial, ou seja, o juiz analisa o caso, reconhece o crime assim como a culpabilidade do agente, mas em seguida concede o perdão judicial (Código Penal, artigo 121, parágrafo 5º), julgando extinta a punibilidade.

 

 

Essa sentença não é condenatória, sim, declaratória de extinção da punibilidade (Súmula 18 do STJ). Fala-se em sentença autofágica porque ela admite ter havido crime mas ao mesmo tempo extingue a punibilidade do Estado. Para fins penais é como se o agente nunca tivesse sido processado. Em outras palavras: essa sentença não vale para antecedentes criminais, reincidência etc.

O fundamento principal para a concessão do perdão judicial, nesses casos, é o seguinte: o pai, com sua conduta, já sofreu o suficiente diante da sua própria negligência. Ele experimenta uma espécie de "pena natural", isto é, uma pena (um castigo) derivada de fato por ele mesmo praticado.

 

 

Nessas situações, a pena estatal se torna totalmente desnecessária. Incide aqui o princípio da (des)necessidade da pena, que é defendido, dentre outros, pelo professor Roxin.

Mesmo depois de reconhecida a culpabilidade do agente (que podia se motivar de acordo com a norma e se comportar de forma diferente, conforme o direito), ainda assim, há situações em que a sanção do Estado perde completamente sua finalidade, tornando-se desnecessária seja para fins de repressão, seja para fins de prevenção (artigo 59 do Código Penal).

 

 

Quando o fato, pelas suas conseqüências, atinge o agente de forma grave, a pena se torna desnecessária; cabe ao juiz, nessa situação, deixar de aplicá-la. Qualquer sanção estatal seria pura expressão de desumanidade e de desproporcionalidade.

Problema jurídico-penal: do ponto de vista técnico-penal, a dificuldade consiste em saber se esse ato (pai que negligentemente esqueceu o filho dentro do carro, causando sua morte) constitui um homicídio culposo comissivo ou um homicídio culposo comissivo por omissão (crime omissivo impróprio).

 

 

Por força do artigo 13, parágrafo 2º, do Código Penal, o dever jurídico de agir (nos crimes omissivos impróprios) incumbe a quem, (...) com seu comportamento anterior, criou o risco de ocorrência do resultado. No caso do pai que esqueceu o filho de tenra idade dentro do carro, gerando sua morte, é preciso distinguir o seguinte:

a) se a criança, em razão da negligência do pai, já foi encontrada morta, a ele deve ser atribuído um homicídio culposo (homicídio culposo comissivo, ou seja, por ação);

 

 

b) se a criança foi encontrada pelo pai em estado de alto risco (desacordada, quase falecida, desnutrida), mas ainda com vida, e o pai, diante dessa situação de perigo nada fez (omitiu-se), responde por homicídio culposo por omissão (crime omissivo impróprio ou comissivo por omissão, decorrente de comportamento anterior do próprio agente, que gerou a situação de risco e, depois, podia agir para evitar o resultado e não agiu). Claro que, seja numa ou noutra hipótese, cabe perdão judicial (o homicídio culposo admite o perdão judicial quando a infração atinge o próprio agente de forma grave —Código Penal, artigo 121, parágrafo 5º).

Problema processual: considerando-se que o juiz somente pode conceder o perdão judicial na sentença que encerra o conflito, é pratica corrente (é da práxis) que mister se faz instaurar o devido processo criminal, colher provas e somente no final é que o perdão judicial terá incidência.

 

 

Isso significa, na vida real, que o agente sofre uma dupla punição: a primeira decorrente do seu próprio ato (perda de um filho, por exemplo); a segunda consiste na obrigatoriedade de responder a um processo criminal que, por si só, já constitui um sério constrangimento.

Aqui reside mais um ponto em que o processo penal está totalmente defasado em relação ao direito penal. Se o direito processual penal é instrumental, ou seja, se ele serve (primordialmente) para a aplicação do direito penal, não há dúvida que o Parlamento brasileiro deve atualizar o Código do Processo Penal nesse ponto, para permitir, já no limiar da ação penal, que o juiz, de plano, reconheça o perdão judicial.

 

 

Haveria, pelo menos, dois caminhos que poderiam ser seguidos: ou se muda a lei para permitir a realização de uma simplificada e rápida instrução probatória (cabendo ao juiz decidir tudo imediatamente já no momento do juízo de admissibilidade da ação), ou, o que é melhor, altera-se a legislação vigente para instituir uma espécie de plea bargaining: mediante acordo, numa só audiência, com as presenças obrigatórias do Ministério Público e do defensor, prontamente tudo poderia ser encerrado com a sentença judicial, evitando-se as cerimônias degradantes do processo criminal, despesas judiciais inúteis, emperramento da Justiça criminal etc.

A palavra está com o legislador brasileiro, que tanta preocupação tem demonstrado com a violência no nosso país. De qualquer modo, não se pode prosseguir concebendo que o perdão judicial, em casos induvidosos, continue sendo concedido na forma atual. É excessivo e desproporcional compelir o agente, que já foi punido pelo próprio fato, a se submeter a um longo, penoso, degradante e desnecessário processo criminal.

 

 

Terça-feira, 17 de abril de 2007

Negligência paterna, homicídio não intencional e perdão judicial.

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