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Mais do que leis penais, país precisa de juiz imparcial.
por Marcio Barandier
O processo penal brasileiro passa por um momento de profunda transformação. Com a vigência, a partir do último mês de agosto, das Leis 11.689/08, 11.670/08 e 11.719/08, que alteraram, respectivamente, dispositivos do Código de Processo Penal relativos ao Tribunal do Júri, à prova e à suspensão do processo, emendatio libelli, mutatio libelli e procedimentos, surgiram também, como é natural, muitas dúvidas e críticas.
Boas, ruins ou incompletas, o fato é que as modificações já deveriam estar plenamente incorporadas à rotina da Justiça Penal, mas em certos aspectos as resistências são grandes.
Entre as novidades mais difíceis de serem efetivamente implementadas está o novo sistema de inquirição de testemunhas, claramente inspirado no modelo norte-americano, que prevê o cross-examination, com perguntas formuladas pelas partes diretamente às testemunhas, devendo a intervenção do juiz se limitar a impedir aquelas que induzem a resposta, não guardam relação com a causa ou sejam repetitivas, e a complementar a inquirição sobre pontos não esclarecidos (artigo 212 do CPP, com redação dada pela Lei 11.690/08).
Muitos magistrados, no entanto, continuam, eles próprios, em primeiro lugar, a inquirir as testemunhas, exatamente como no regime anterior, concedendo posteriormente a palavra à acusação e à defesa para indagações.
Sustentam alguns que a reforma pretendeu melhor definir os papéis dos sujeitos processuais e afastar resquícios do sistema inquisitivo, adaptando o nosso Direito Processual Penal ao sistema acusatório, eleito pela Constituição Federal de 1988. Nessa linha, novos comandos legais teriam o objetivo de reforçar a eqüidistância do juiz, afastando-o do exercício da função de tutor do Ministério Público, assumida em diversas oportunidades por disciplina do Código de Processo Penal concebido na década de 40, o que não se justifica atualmente.
É lógico que, lamentavelmente, o rompimento total com o sistema inquisitivo não aconteceu devido a certas hesitações do legislador. No que concerne à produção da prova testemunhal, contudo, não há dúvida de que o juiz deve assumir papel bem diferente.
Calamandrei, em sua obra Proceso y democracia, comenta a impressionante resistência de advogados, membros do Ministério Público e juízes a certas inovações legislativas de natureza processual, ao ponto de afirmar que, na realidade, o que modela o processo, o que lhe dá sua fisionomia típica, não é a lei, e sim o costume que a põe em prática.
O notável jurista italiano sublinha ainda que “a veces la práctica va más alta; puede transformar insensiblemente toda la orientación de una reforma, paralizando las intenciones renovadoras com uma sorda resistência, más mortífera que uma aberta rebelión”, lembrando repetidas experiências históricas. Mais: afirma que no processo penal podem ser encontradas transformações ainda mais gravemente subversivas dos princípios consagrados na lei, exemplificando com as averiguações instrutórias para busca dos culpados de um delito, que na Itália e na França, naquela época, deveriam ser realizadas pela magistratura, mas acabavam assumidas, contra o disposto na lei, pelos agentes de segurança pública, “de manera que el proceso penal, con un retroceso de siglos, há vuelto a ser un proceso inquisitório de polícia”.
O professor Maurício Zanoide de Moraes, em palestra proferida na Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj), no dia 25 de julho de 2008, sobre as recentes alterações no Código de Processo Penal, ressaltou que essas inovações, independente das opiniões particulares sobre as suas virtudes e deficiências, exigem uma leitura desapegada do Direito antigo, porém em uma perspectiva constitucional, sob pena de não vingarem.
Ainda nesse mesmo evento realizado na Emerj, o desembargador Marcus Basílio, com arguta percepção da realidade forense, lembrou que realmente é preciso, junto com a legislação, de uma mudança na maneira de pensar o novo processo penal, pois de nada adiantará, por exemplo, a lei extinguir a iniciativa do juiz de, expressa e formalmente, provocar um aditamento à denúncia pelo Ministério Público, se o magistrado sair do seu gabinete para bater à porta da sala do promotor de Justiça a fim de “alertá-lo”, verbal e informalmente, sobre uma qualificadora que deveria ser incluída.
Para que seja alcançado o ideal de um processo penal comprometido com o Estado Democrático de Direito e efetivamente compatível com o sistema acusatório, mais do que três leis, é necessária uma postura de independência, imparcialidade e equidistância por parte dos magistrados que não se coaduna com as ações próprias dos órgãos de persecução.
Do contrário, permanecerá atualíssima a observação, novamente de Calamandrei, de que determinadas instituições previstas nas leis, na prática se atrofiam e desaparecem, e vice-versa, na prática podem surgir modos de proceder que a lei escrita desconhece.
Revista Consultor Jurídico, 30 de setembro de 2008.
Sobre o autor
Marcio Barandier: É advogado criminalista.
Mais do que leis penais, país precisa de juiz imparcial.