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O TRIBUNAL DO JÚRI E O USO INDISCRIMINADO DE ALGEMAS.

O uso indiscriminado de algemas em pessoas presas, nomeadamente nos acusados submetidos a julgamento perante as sessões do Tribunal do Júri desperta, de forma sintomática possibilitada com os ventos soprados pela Carta Cidadã de 1988, controvérsias nem sempre bem resolvidas na prática forense, seja pela habitualidade secular do emprego dessas aviltantes grilhetas na legislação aplicada no Brasil, passando pelas Ordenações Filipinas, seja também pela atual ausência de legislação específica abordando o tema em testilha, fatores que dificultam sobremaneira evitar o emprego desmedido e às vezes gratuito das infamantes argolas de ferro.

Com efeito, a par da existência de projetos de lei tratando e disciplinando a matéria sob comento, ora para alterar o CPP, ora para dar vida ao art. 199 da LEP (Lei n.º 7.210/84 - Lei das Execuções Penais), o certo é que ainda inexiste em âmbito federal norma regulamentando a utilização de algemas nos presos em geral, sendo que os arts. 284 e 292 do CPP nos dão apenas uma baliza para a tentativa de solução do problema, uma vez que não tratam especificamente da questão, retratando referidos dispositivos, em suma, que a constrição pessoal do cidadão só será feita pela força quando houver perigo de fuga ou resistência. Na órbita da Justiça Castrense, temos o art. 234, § 1.º, do CPPM, o qual aduz, em resumo, que o emprego de algemas deve ser evitado, a menos que haja perigo de fuga ou agressão por parte do preso e, de modo algum, agora com ranço elitista, com relação aos presos referidos no art. 242 desse mesmo diploma. Em nível estadual, chegou-me a notícia de que o Decreto Paulista n.º 19.903/50 também adota para o uso de algemas o mesmo critério seguido pelos dispositivos legais antes mencionados, vigorando esse mesmo espírito no art. 10, III, da Lei n.º 9.537/97 (segurança do tráfego aquaviário em águas sob jurisdição nacional).
Em face desse breve apontamento legislativo, queda claro que o uso de algemas exige o requisito da necessidade, motivada pela resistência e/ou perigo concreto (e não em abstrato), de fuga do preso, uma vez que fora desses casos o emprego das degradantes argolas poderiam caracterizar os crimes de abuso de autoridade descritos nos arts. 3.º, “i”, e 4.º, “b”, da Lei n.º 4.898/65.

Entrementes, a realidade dos Fóruns não é nada auspiciosa, doendo nos olhos o desrespeito acintoso por parte de muitos operadores do Direito no uso das humilhantes algemas, num medonho retrocesso atávico, mantendo ou determinando a colocação delas em todos e quaisquer pulsos, numa generalização atroz, ancorado no único e provisório fato de estar o acusado preso e não, como seria exigível, o fato de o acusado empreender resistência ou ainda existir seu concreto perigo de fuga, certo que os presos não são iguais, não desejando por isso levarem uma vida de gado!

Não bastasse ao acusado preso a tortura psicológica que lhe acompanha durante a tramitação de seu processo criminal, ele também fica à mercê do uso indiscriminado e gratuito desses indignos instrumentos de ferro, açoitando-se impiedosamente o disposto no art. 5.º, XLIX, da CF, art. 5.º, 1, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Decreto n.º 678/92), e art. 10, 1, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (Decreto n.º 592/92), os quais asseguram a integridade física e moral do preso, normas que são diuturnamente varridas para debaixo dos tapetes de algumas salas de audiências, quiçá dando azo à concretude de um poder confinado e estéril, cuja única meta é despertar nos acusados e jurisdicionados não o respeito pelas autoridades, mas o medo delas, de sorte que quando ele for embora, nada, absolutamente nada restará delas!

O malsinado vezo do uso desenfreado de algemas mostra-se ainda mais deletério na sessão de julgamento pelo Tribunal do Júri, segunda fase de seu procedimento bifásico, também denominado juízo de mérito ou da causa, formado por duas entidades: a Presidência, integrada por um Juiz de Direito, e o Conselho de Sentença, integrado por sete cidadãos leigos, os jurados.

Deveras, na sessão do Júri, a questão de fundo ou a decisão de mérito é secreta e soberanamente decidida por sete pessoas do povo, também chamados juízes leigos, os quais julgam de acordo com a sua livre convicção íntima, subjetiva, pessoal, consoante art. 5.º, XXXVIII, “b”, da CF, diferente, portanto, do juiz togado, o qual plasma seus veredictos de acordo com sua livre convicção motivada, ex vi do art. 93, IX, da CF. Nesse passo, conforme a nossa máxima de quase 20 anos de experiência na atuação perante o Tribunal do Júri, não fica difícil depreender que os jurados percebem e analisam os detalhes mais prosaicos ocorridos durante a sessão do Júri, inclusive os detalhes que envolvam seu principal protagonista: o acusado.

Os trabalhos do Júri desenvolvem-se de maneira bem solene, com o uso de becas pelas partes processuais, como manda a tradição, e o de toga pelo juiz presidente. Formado o Conselho de Sentença e tomado o compromisso dos jurados, com todos os presentes ostentando aquela circunspecção de velório, eis então que nesse clima é apresentado o acusado, em uniforme carcerário da cor cenoura, às vezes combinando com os dentes, para o ato de seu interrogatório, ao menos duplamente humilhado, a uma por ter estado pouco tempo antes e depois continuar sentado no famigerado banco dos réus e não ao lado do seu defensor, a duas por ter seus pulsos atados pelas vis pulseiras de ferro, sem qualquer motivação de sua necessidade! O pior ainda acontece quando a defesa requer ao juiz presidente em plenário a retirada das algemas do acusado enquanto perdurar seu julgamento, respondendo ele, em alto e bom som, que indefere o pedido por conta de ser o acusado muito perigoso, incutindo com isso, sem prejuízo de nulidade, o pânico no espírito dos jurados, mais o desesperado desejo de condenarem o mais rápido possível o acusado e logo saírem daquele iminente perigo! “Se o réu está preso até aqui, ainda algemado, sem que o juiz o soltasse Dr., boa coisa ele não é!”, confidenciou-me certa feita um jurado após o término de um julgamento.

PENAL. REU. USO DE ALGEMAS. AVALIAÇÃO DA NECESSIDADE. “A imposição do uso de algemas ao réu, por constituir afetação aos princípios de respeito à integridade física e moral do cidadão, deve ser aferido de modo cauteloso e diante de elementos concretos que demonstrem a periculosidade do acusado. Recurso provido” (STJ - 6ª T. - RHC nº 5.663-SP; Rel. Min. William Patterson; j. 19/08/96).

Júri - Nulidade - Réu mantido algemado durante os trabalhos sob a alegação de ser perigoso - Inadmissibilidade - Fato com interferência no ânimo dos jurados e, conseqüentemente no resultado - Constrangimento ilegal caracterizado - Novo julgamento ordenado - Aplicação do art. 593, III, “a”, do CPP. “Írrito o julgamento do Júri se o réu permaneceu algemado durante o desenrolar dos trabalhos sob a alegação de ser perigoso, eis que tal circunstância interfere no espírito dos jurados e, conseqüentemente, no resultado do julgamento, constituindo constrangimento ilegal que dá causa a nulidade” (RT 643/285).

Habeas corpus. Tribunal do Júri. Uso de algemas durante o julgamento. “A regra prevista no art. 284 do Código de Processo Penal é a da não permissão do emprego da força, somente ocorrendo, se indispensável, e, no caso, o presidente da sessão, que detém o poder de polícia, poderá determinar a requisição do reforço policial para viabilizar o julgamento. O uso de algemas poderá ocorrer num segundo momento, e justificadamente, sempre que exigir o caso concreto, objetivando a segurança de todos e a ordem dos trabalhos. Constrangimento ilegal. Há constrangimento ilegal, no uso de algemas, quando as condições do réu não oferecem situação de efetiva periculosidade, estando escoltado, existindo policiais fazendo o serviço de revista nas demais pessoas que ingressam no local do julgamento, não se constatando qualquer animosidade por parte do público, inclusive havendo possibilidade de ser requisitado reforço policial. A repercussão do fato e a comoção da comunidade, em si mesmas, não se constituem motivos para a utilização de algemas, medida excepcional e drástica, e que pode ofender a dignidade da pessoa humana, a até interferir negativamente, na concepção dos jurados, no momento de decidir. Concedida a ordem” (Habeas Corpus n.º 70001561562, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul).

Dia desses fiz um Júri em que o acusado, com 74 anos, já bem arquejado e doente, seria apresentado para o interrogatório devidamente manietado com as ignominiosas grilhetas, ocasião em que solicitei ao juiz presidente a retirada de referidos instrumentos, uma vez que o primário e aposentado ancião não ofereceria qualquer risco à ordem dos trabalhos, respondendo-me ele que indeferia o pedido por conta de existir o perigo de fuga!

Em conclusão, o uso das algemas não deve ter por finalidade a antecipação, de forma humilhante, de uma hipotética condenação a ser amargada pelo acusado, uma vez ser ele presumidamente inocente, o que será ainda mais reforçado se ele também for primário e de bons antecedentes e desde que também não se faça presente o requisito da necessidade do emprego de referidas algemas, consistente na prática de resistência ou ainda a existência de um concreto perigo de fuga, não bastando que essas duas causas sejam invocadas de maneira abstrata, hipotética, sob pena de o julgamento pelo Júri ser inexoravelmente acoimado de nulo, tudo sem prejuízo, claro, da presença armada da valorosa guarda pretoriana nas sessões de julgamento.

 

Romualdo Sanches Calvo Filho
Criminalista, Professor, Autor, Tribuno do Júri e Diretor Presidente da APDCrim

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