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Homenagens

Romeiro Neto, o último romântico da Advocacia Criminal.
 


Eliézer Rosa


VI

Não sei de nenhuma outra forma de advogar mais dolorosa e pungente que a advocacia criminal. Tudo nela é dor e desespero. Os próprios triunfos têm seu tanto de amargor, porque, enquanto pende o processo e se prepara a causa, há sofrimentos que a vitória não apaga completamente. Não é sem razão que a memória humana guarde, com mais insistente freqüência, o nome aureolado de celebrados advogados criminais, e quase sempre esquece o não menos famoso daqueles que elegeram, no cível, o faustoso domicílio do seu aturado esforço e custoso trabalho. Será essa a recompensa da História aos incruentos padecimentos profissionais do homem que consagrou o melhor de sua vida ao Direito Penal.

Há no semblante austero dos grandes advogados criminais uma discreta sombra de amargura que atesta a convivência diuturna com a angústia alheia, que neles se imprime como a verônica inapagável da profissão. Eu lhes vi a muitos a cabeça aureolada pelo forte esplendor da glória e do saber. Eu vi-os passarem soberbos na humildade dos sábios e dos bons. Mas vi também no rosto deles a morada sem brilho da melancolia sem remédio. Vi o eternamente torturado semblante de Romeiro; vi o rosto ensombrado dessa tristeza em Evaristo; vi a face magoada de Bulhões e a grave tristeza no parecer de Severiano. Eram homens, a bem dizer, amargos. Não amargos de maldade; mas amargos de humanidade, de simpatia para com o trágico destino de certas vidas malferidas e mal vividas, que à sombra deles iam pedir um pouco de descanso e paz. Pode ser-se eminente advogado de causas cíveis e administrativas, como foram tantos em nosso meio, e, todavia, passarem despercebidos da multidão. Isso nunca acontece, nem jamais acontecerá, aos também grandes advogados criminais. Só estes atraem para si as atenções difíceis e admiradas de uma época e só eles arrebatam para si as arredias honras populares. Só eles permanecem redivivos, na lembrança esquiva da posteridade, atravessando idades e fronteiras, entrando para a História. E é bem que seja assim. É o tributo devido aos lidadores intimoratos a pró da liberdade, mais precioso bem que a própria vida.

Nunca ninguém o disse, nem eu também sei, como se faz um grande advogado criminal de Júri ou dos juízos singulares. Penso, porém, que deve ser com aturado labor de estudos especializados; um vasto conhecimento da misteriosa alma humana; um mortificante lavor de leituras de leis, doutrinas e repertórios volumosos de arestos dos Tribunais; um trato diuturno e incansável com prosadores e poetas, a que vão pedir os ornamentos de suas formosíssimas orações; um adestrado tirocínio da prova criminal; uma lúcida memória sempre alerta, para os apartes fulminantes e demolidores; um longo e exaustivo exercício oratório, porque, como disse Latino Coelho, de todas as artes, a mais difícil é a da palavra. Boa e impressiva presença pessoal. Há de ser sempre o ator, teatral na voz; teatral nos gestos, teatral na encenação grandiosa dos fatos, para lhes retirar o feio traço criminoso; teatral na apresentação do réu, para dele afastar as subconscientes prevenções. Tem de ser o mágico que encante e o lógico que convença, sem manhas nem artifícios. Cumpre que seja hábil diplomata, para, com arte e finura, desarmar os espíritos prevenidos contra o réu e contra a defesa. Nunca improvisar. Conhecer nos mínimos pormenores a prova do processo. Não subestimar em nenhum momento o senso comum do corpo de jurados. Como aconselhava Gambetta: há de sempre começar bem, acabar bem e, no meio da oração, pôr talento, muito talento, para agradar e convencer. Mas, antes e acima de tudo, tem de ser o vocacionado, tem de trazer do berço o recorte originário do gênio da defesa. Será sempre o artesão, na construção da prova; o artífice na urdidura das peças de defesa, e o artista, na apresentação da causa em plenário. Há de ter um pouco de diabo e muito de anjo.

Todo advogado criminal de Júri tem, pelo menos, quatro implacáveis adversários: a promotoria, o corpo de jurados, o próprio fato da causa e a presença evocativa da pessoa do réu. Tudo é sombra e mistério numa sessão de julgamento. Absolver ou condenar, tudo depende de fortuitas circunstâncias, que transmudam, em monstro o desgraçado inocente, ou convertem em vítima o sanguinário criminoso. De um réu ouvi contar que fora condenado, porque dormia de cansaço, durante o julgamento, e o júri tomara como ofensivo descaso o insopitável sono do infeliz. De Laval se conta, em certo livro, que fora condenado, porque, fazendo sua própria defesa, suscitou em plenário uma cabível, mais odiosa exceção de incompetência. Em certa sessão de julgamento, a incansável promotoria esforçava-se em argumentos contra a figura do réu, buscando desfazer a negativa de autoria em que se assentava a bem urdida arquitetura da defesa. Esgotada a série de argumentos ouvidos com evidente ceticismo por parte dos jurados, foi quando, repentinamente, surgiu drapejante nas mãos do Promotor, diante dos olhos atônitos dos homens do Júri, uma camisa ensangüentada, que fez tremer de espanto os sete apóstolos da Justiça popular. Seria da vítima a sinistra peça? Seria humano o sangue que a manchava? Tudo poderia ser e é de crer que fosse sim, pela incontestável dignidade do órgão acusador. Como prova, porém, nada valia. No entanto, valei, pesou, fez pender o prato instável da balança na mão da clássica deusa da Justiça. Foi a lógica mística, da emoção, foi o brusco despertar da sacral ancestralidade que dorme esconsa e milenária dentro de cada criatura humana, desde o primeiro homicídio da História. Naquele lance patético de mágica probatória todos sentiram que estava selada a sorte do indigitado matador. O sentimento, não a razão, ditou a sentença condenatória, antes mesmo que o julgamento terminasse, na já inutilidade de suas derradeiras formalidades. Sócrates, sereno e professoral, foi submetido ao julgamento de um tribunal popular, como o sabem todos. Ao Júri se propuseram apenas dois quesitos, a saber: primeiro, se Sócrates era inocente ou culpado, segundo, se, culpado, merecia a morte. Ao primeiro quesito, responderam duzentos e trinta e seis jurados que era Sócrates culpado, e duzentos e trinta e três, que ele era inocente. Ao segundo quesito, responderam duzentos e setenta e seis que Sócrates merecia a morte, e cento e noventa e três que ele não merecia a morte. De um quesito a outro, quarenta mudaram de opinião. E Pitigrilli conclui que o infortunado Sócrates não bebera a cicuta tanto por obediência à sentença, mas por desgosto, em vista da falta de firmeza e lógica por parte de seus julgadores. É assim a história dos julgamentos populares. E a esses repelões da inconstância e ilogismos tem de acostumar-se, sobranceiro e filosofal, aquele que, um dia, no lirismo de sua mocidade, se enamore da Tribuna caprichosa das defesas criminais.

 

E porque Romeiro Neto levava consigo a densa história desse largo martirológico; porque carregava consigo a angústia da experiência da falibilidade dos humanos julgamentos coletivos, foi que ele, em pleno Tribunal, pedia desculpas a um réu, anteriormente condenado em julgamento do qual não participava, e agora absolvido em revisão justiceira. Pedia desculpas em nome da Justiça. Essa sensibilidade é privilégio dos homens do Direito Penal. Aquele Juiz criminal italiano, cujo nome não vem injustamente referido, chamou um guarda e disse-lhe a meia voz: vá dizer àquela mulher que não chore mais, porque será absolvida. Mandou-lhe a mensagem de tranqüilidade, antes mesmo de saber qual haveria de ser o resultado dos vôos não colhidos. E, depois, ferido diante de si mesmo da quebra inusitada de austeridade que acabara de cometer, justificou-se, dizendo: "Senti que devia poupar o sofrimento de quem já estava suficientemente humilhada e, por isso, devidamente punida. Não se retarda de um minuto a alegria de um réu", concluiu em paz com sua consciência. Essa humanidade é a virtude e o defeito sagrado dos homens do Direito Penal, o mais anti-humano de todos os ramos do Direito, no atormentado mundo de nossos dias. Essa dolorosa sensibilidade dos homens do Direito Criminal é a cruz e a coroa de espinhos que todos têm de carregar pela vida fora. Cada um e todos têm aquela mesma sensibilidade para os sofrimentos alheios, como a daquele mandarim chinês que não conseguia dormir, quando, debaixo de seus lençóis, a camareira esquecia uma pétala de rosa, que o incomodava e lhe sonegava o sossego do sono. Era assim que era o amigo de quem a morte nos deixa tristes e separados. (in DEFESAS PENAIS, João Romeiro Neto, 3.ª Edição, Rio de Janeiro, Líber Juris, pp. 20/23).​

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